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Foto do escritorJosé Tavares

Reflexões sobre Jerusalém

Atualizado: 24 de fev.


Jerusalém: o sentimento e o coração


Jerusalém é outro lugar de outra vertente da consciência, por onde passa, sobretudo, o sentimento, o coração e uma certa mística de crença, de religiosidade. O coração tem efetivamente razões que a razão desconhece, mas reconhece que atravessaram e atravessam os tempos e a cultura dos povos. É o outro lado do humano, menos luminoso, consciente e mais difuso, analógico que nos liga diretamente ao corpo que também somos, à física, à biologia, à psicologia, à cultura, ao mundo onde habitamos e que nos habita e nos põe em contato com tudo o que é espácio-temporal. Mas o homem que não é apenas o Dasein de Heidegger, nem o même de Merleaux-Ponti, nem o l’homme de l’autre homme de Levinas, mas alguém do Povo Eleito, do homem novo da nova Jerusalém, dos filhos de Deus, em Jesus de Nazaré, o Cristo Redentor e Senhor de tudo o que existe e possa vir a existir nas suas mais variadas modalidades de ser e de estar. Embora nunca tenha estado em Jerusalém, é uma cidade que sempre teve sobre mim um grande fascínio, confesso. Em determinado tempo da minha vida, estudei afincadamente Teologia e Bíblia do Antigo e Novo Testamentos. Talvez, para dar resposta a perguntas que na filosofia não encontrava. Pensei que através de uma leitura aprofundada e crítica dos textos bíblicos, poderia chegar um pouco mais longe e mais fundo na minha ânsia de conhecer a realidade física, biológica, psicológica e cultural, indagando mais sobre algo ou Alguem que a antecede, a infinitiza e eterniza, o divino. Por isso, fui-me orientando no sentido de, no final do curso de Teologia que terminei em 1967, rumar a Jerusalém e inscrever-me naquela que era considerada, a época, a melhor escola em Sagrada Escritura, o Instituto de Estudos Bíblicos, em Jerusalém. Aprofundei o estudo do grego, estudei hebraico, alemão, línguas que poderiam facilitar esse estudo e investigação no acesso às fontes e publicações especializadas sobre essa temática. Os meus anseios, infelizmente, acabaram por não poder ser realizados e tive de repensar a minha vida de maneira diferente. Jerusalém, porém, ficou sempre no meu espírito como uma referência e uma atração. Bastante mais tarde, em 1974, quando procurava um tema de investigação para a tese de doutoramento em Filosofia, na Universidade Católica de Lovaina, pensei que Atenas e Jerusalém poderiam ser essa escolha, duas cidades onde, de algum modo, confluíam duas grandes linhas do pensamento: a razão e o coração que recortam dois olhares sobre a cultura e as civilizações, um de cariz mais ocidental e o outro mais oriental. Esses olhares estão efetivamente presentes em simultâneo nessas duas abordagens da realidade ainda que com incidência e intensidade distintas. Acabei, todavia, por não seguir essa ideia por uma questão realista e pragmática, pois, o tempo de que dispunha e a natureza da tarefa não me permitiam enfrentar um desafio dessa magnitude numa dissertação para doutoramento. Não podia entrar numa tal aventura tão complexa e delicada para além de não ser fácil a sua defesa em provas de doutoramento. A ideia, porém, não ficou esquecida. Estou a tentar, agora, retomá-la, de uma maneira mais livre e sem compromisso, nesta reflexão que, por isso, não darei por acabada, mas irei retomando e aprofundando ao longo do tempo. Assim, penso focar-me, sobretudo, numa reflexão pessoal e sem constrangimentos sobre essas duas cidades, Atenas e Jerusalém, tendo em conta as duas vertentes do pensamento e da ação que elas, de certa forma, suscitam na busca do sentido das coisas, do ser humano e do divino que constituíram e constituem o objeto do questionamento do homem de todos os tempos. Não será uma tarefa fácil, mas é, sem dúvida, um desafio muito estimulante que não consegui deixar de acolher e aceitar, neste momento, em que o meu dia já vai alto, como uma janela privilegiada para perceber e ainda tentar experienciar um pouco o que se passou, o que se passa e passará no mundo dos homens e das civilizações de todos os tempos e lugares deste planeta que habitamos, especial, sem dúvida, apesar da sua pequenez no imenso e misterioso universo. Continuo a pensar que essas foram, são e serão as duas dimensões fundacionais da curiosidade e experienciação do ser humano no tempo na sua grande aventura de ser mais humano e mais feliz. Embora diferente de Atenas, Jerusalém foi e é também uma cidade muito especial com mais de 4 milénios de existência, destruída, pelo menos, duas vezes e reconstruída de novo, mas sempre ligada a uma mensagem mais interior e misteriosa que poderíamos condensar na relação entre amor humano e divino, em que os sentimentos, o misticismo e a religião se revestem de grande importância para a explicação e compreensão da realidade existente e possível. Não é, porém, a história ou a arqueologia de Jerusalém que aqui me interessa e move, mas a mensagem que a atravessa e a liga com muitos outros povos, regiões, culturas e civilizações do mundo e, designadamente, a oriente e a ocidente mais próximos ou distantes. Em 1973 e 74 ao fazer investigação, na Universidade Católica de Lovaina, para elaborar o meu “Memoire” sobre Violence de la réprésentation chez Emmanuel Levinas, pensei bastante em Jerusalém para onde converge esta grande vertente filosófica e linguística da história das ideias. Em boa medida, o pensamento de Levinas, desenvolvido na sua obra filosófica, inscreve-se nesta dimensão. Em L’Humanisme de l’Autre Homme , Totalité et Infini, e Autremente qu’Être, está bem vincada a linha do seu discurso filosófico embora na parte final da sua vida se tenha concentrado, de um modo especial, na questão ética que aliás esteve desde o princípio na raiz do seu filosofar. Ver o acontecer das coisas antes do seu começo, antes do princípio, no lugar e no tempo, antes da sua própria existência espácio-temporal, em que a representação lógica se esgota para dar lugar à não violência da representação e dar lugar à verdade como alêtheia que no mesmo ato de revelar a realidade a esconde e a furta ao dizer do dito e se torna ao mesmo tempo a morada do Ser, que é também a verdadeira morada do homem de todos os tempos e lugares, como diria, porventura, Fernando Pessoa. É esta visão do conhecimento e da experienciação do ser humano que passa por Jerusalém como religião, fé e crença que nos permite abrir janelas de esperança para o divino e alimentar a ligação entre o profano e o sagrado, o homem e Deus. É por esta via que brilha, em todo o seu esplendor, Jerusalém, lugar de religiões, de misticismos e revelações em que o homem procura a sua ligação com o divino e procura dizê-la em diferentes narrativas, todas elas convergentes num Deus Infinito, Eterno, Exterior e Interior, ao mesmo tempo, Misterioso e Insondável. Por isso, a verdadeira atitude do homem não é a de O compreender, abarcar, representar em imagens, conceitos, ideias, mas de O sentir, amar e adorar. Esta é a única forma de agradecer a dádiva da própria existência que serve de suporte à realidade física, biológica, psicológica e social e ética. É por essa senda que julgo passar o humanismo do outro homem à luz da reflexão de Emmanuel Levinas decorrente das suas leituras do Talmude. Jerusalém evoca tudo isso e é também, em grande medida, por essas razões que ela é disputada pelas três grandes religiões monoteístas, o judaísmo, o cristianismo e o islão, como a sua cidade de referência, não obstante terem ido emergindo outros lugares no planeta em diferentes tempos e latitudes. Mas Jerusalém evoca também um modo diferente de pensar e de representar a realidade que iremos encontrar, sobretudo, no oriente em que a razão cede a primazia ao sentimento, ao coração. A máxima “sente antes agir” parece ser a atitude que está subjacente a essa mundividência em contraponto com a máxima “pensa antes de agir” presente no pensamento mais ocidental que Atenas simboliza. Ou seja, não ficar apenas na contemplação das ideias claras e distintas, cartesianas e da clara Grécia camoniana, da razão pura de Kant ou idealista de Hegel e até do realismo/racionalismo aristotélico de Tomás de Aquino, mas procurar colocar-se no lugar do outro, sentir a sua vida e os seus problemas concretos. São essas as duas grandes dimensões do pensamento que passam por Atenas e Jerusalém e atravessaram e atravessam o mundo das civilizações e da cultura que o ser humano foi deixando na sua já longa caminhada no planeta terra. Sabemos que a forma como cada uma destas dimensões foi emergindo na História da Humanidade é diferente a oriente e a ocidente. A oriente prevalece uma razão mais cordial, emocional, analógica. A ocidente uma inteligência mais racional, mais lógica, algorítmica. É fácil de ver como se configura cada uma destas modalidades de ler e interpretar o mundo, a realidade existente e possível na história do pensamento. Concentrando-nos, porém, na dimensão mais emocional que, de alguma maneira, Jerusalém polariza, constatamos que ela está também presente nas civilizações de matriz ocidental e oriental pela simples razão de que essas duas componentes integram a essência do ser humano, configuram e marcam todas as suas atividades e realizações. Pois não é possível pensar o homem quando apreende, perceciona, representa, concebe e julga a realidade existente e possível sem ter presente que, ao mesmo tempo, também, sente e se emociona e quando sente e se emociona também pensa, julga e decide. É o que poderemos verificar em todos os seus estados cognitivos, artísticos e comportamentais na história das ideias, no progresso científico e na cultura, em geral. Por isso, a clara Grécia onde Atenas emerge com uma luminosidade especial está, de certa forma, sempre presente. Mas uma visão mais difusa, afetiva, cordial que Jerusalém simboliza não deixa de estar também subjacente. É esta presença de dois mundos, que passam um pelo outro com intensidades distintas, que configura duas dimensões, dois modos de ser, de estar, de conhecer e agir sobre a realidade a oriente e a ocidente que aqui gostaríamos de sublinhar não apenas em relação a um passado mais ou menos distante, mas também em relação a futuro. Apesar da globalização da cultura e das maneiras de ser, estar, e das formas de conhecer e agir sobre a realidade, nas sociedades emergentes, quando olhamos mais atentamente para tudo o que vai acontecendo, hoje, no mundo dos homens, tudo fica mais claro e transparente para quem não se deixar fechar apenas ao nível das ideias ou de uma digitalização algorítmica que tende a cobrir, a tapar totalmente a própria realidade ocultando o seu próprio mistério. Esse é o grande perigo do cientismo tecnológico dos nossos dias que julga manipular a realidade cobrindo-a ou ocultando-a com o manto da sua autossuficiência racional, para não dizer, de uma certa arrogância e despudor. Sabemos que a realidade escapa por “entre os dedos” dos seus conceitos e da sua medida, da violência da representação lógica e algorítmica que apesar do seu enorme progresso apenas nos deixa ver sombras ou ilusão da mesma no fundo das cavernas do espaço e do tempo. Todos sabemos e sentimos que a realidade é diferente e é isso o que alimenta a nossa curiosidade e o nosso questionamento. Hoje, mais do que nunca, o nosso equilíbrio humano não prescinde de satisfazer este seu desejo que a ciência e tecnologia não lhe podem assegurar, porque o homem vive e alimenta-se essencialmente do simbólico.

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