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Foto do escritorJosé Tavares

Atenas e Jerusalem no mundo de ontem












Quando evocamos Atenas e Jerusalém, é sobretudo um passado indelével que nos vem à mente, duas cidades ícone com duas visões do mundo, da vida, do pensamento e da religião que chegaram até nós, marcaram a cultura e as civilizações, permanecem no presente e se afundam no futuro.  Essa realidade teve um impacto muito importante na configuração das formas de pensar, de sentir, de agir e de relacionar-se com algo ou alguém exterior de onde tudo depende ou procede de um Ser Infinito, Todo-Poderoso, Justo Misericordioso, Divino a que, em Jerusalém, se chamou Deus, God ou Ser e em Atenas, Água, Ar, Vento, Indeterminado (Apeiron), Espírito (Nous), Número, Medida, Ideia Suprema de Bem, 1º Motor, etc.  Ou seja, desde sempre o ser humano questionou a realidade que o rodeia, a si próprio e a algo ou Alguém que está para além de tudo o que pode percecionar, representar e conceptualizar como existente ou possível, a que chamou água, vento, espírito (nous), número, ideia das ideias, ideia suprema de bem, primeiro motor, causa primeira, ser perfeito, Deus, Javé, etc.

Esta imagem de Atenas e de Jerusalém, qualquer que seja a leitura que cada um delas faça, julgo estar bem presente nas nossas mentes. Atenas remete-nos para tudo o que girou em torno da Acrópole, a capital de um pensamento livre e dialogante que punha em confronto diferentes conceções da vida, dos costumes, da filosofia, das letras e das artes. Parece que ainda hoje pelos sendeiros da colina e nos pátios que levavam à Ágora se ouvem as vozes dos sofistas que afoitamente se pronunciavam sobre todas as coisas e julgavam saber tudo de tudo, “tudólogos”; filósofos, como Sócrates, Tales de Mileto, Sólon, Parménides, Heraclito, Pitágoras, Platão, Aristóteles; poetas como Homero, Hesídio, Ésquilo. Jerusalém aponta-nos para uma outra realidade de natureza mais religiosa, revelada por um Alguém Exterior, Um Deus Único e Trino, o Deus de Abraão, de Isaac e Jacob que os profetas foram anunciando estar para vir e veio a revelar-se nos novos tempos em Jesus de Nazaré, o Salvador, Redentor e Rei de toda a criação que existe e possa vir a existir e que a velha, nova e eterna Jerusalém, de alguma forma, simbolizam.

Refletir sobre Atenas e Jerusalém convoca-nos sempre para um grande desafio que não pode ser reduzido a uma simples análise histórica, científica e filosófica da realidade. É muito mais do que isso, pois nos põe perante duas matrizes culturais que atravessaram o tempo e o espaço, continuam, de uma forma e de outra, no presente e se projetam no futuro da humanidade naquilo que a determina mais profunda e significativamente, o conhecimento, o sentimento e o reconhecimento, a fé, a adoração. O ser humano é, antes de mais, uma modalidade de ser que conhece, sente e reconhece, livre e responsavelmente, não apenas aquilo que é mais ou menos tangível, mas também o intangível, insondável e misterioso. É aqui que se encontra a raiz da sua capacidade de conhecer e pensar, de sentir e ser amado, de querer e de estar religado a algo ou Alguém que constitui sua própria identidade. Um verdadeiro poder mágico que o habita e o torna mais humano, mas não mais do que isso, pois o limita na sua modalidade de ser e obriga a abrir-se ao divino a que está intimamente religado e faz dele um ser essencialmente religioso, crente. Julgo que o progresso científico e tecnológico não poderá nunca ultrapassar esta margem e esta abertura sob pena de perder o seu verdadeiro sentido e a sua relação com o divino que o constituem.

Há, pois, um certo poder mágico humano no passado de Atenas e Jerusalém que marca a história das civilizações e das culturas, o poder da razão e da fé, da crença. Este poder mágico de conhecer, aprender e se questionar tem duas faces uma mais racional e outra mais cordial, mais religiosa, crente. São estes os dois pilares ou dimensões que constituem o mais elemental do ser humano, espírito e matéria, corpo e alma, o corpo que o liga à matéria, à terra e a alma que o liga ao espírito, ao intangível, ao inextenso, ao infinito, ao eterno, ao céu, ao divino. Em Atenas, o homem é concebido com uma ligação mais forte à terra. Os próprios heróis e deuses da sua mitologia que adora são, de algum modo, terrestes, criados pela razão, ideias da razão, mitos transmitidos pela tradição oral e escrita de geração em geração. Fazem parte do maravilhoso de uma representação lógica e pertencem a um determinado sistema racional. Em Jerusalém, a ligação dirige-se a um ser exterior ao sistema e pressupõe uma crença, uma fé em alguém superior ao próprio homem e às forças da natureza. É a crença, a fé num Ser Divino, Todo-Poderoso, fora do espaço e do tempo, Exterior, Eterno e Infinito.

Esta dicotomia simbolizada por Atenas e Jerusalém embora aceite com incidências e intensidades distintas está longe de estar resolvida e configura, ainda que com matizes bem característicos, nas cidades e sociedades dos nossos dias, as dinâmicas científicas e culturais das sociedades futuras. O “penso, logo existo” cartesiano elevado a um nível mais alto com a “razão pura” kantiana e o idealismo hegeliano dão-nos uma das expressões mais avançadas da razão grega que em Atenas se desenvolveu e consolidou. Mas, por outro lado, a possibilidade de um “existir sem pensar”, sem discutir, como um entregar-se simples e confiadamente nos braços da crença e da fé, mostra-nos o rosto da Velha Jerusalém dos patriarcas e dos profetas a caminha da Nova e Eterna Jerusalém do Novo Testamento e, designadamente, do livro do Apocalipse. Reconhecemos que em outras latitudes e muitos outros povos expressaram e professaram crenças e cultos distintos, mas todos elas entroncam numa raiz profunda e misteriosa que os religa a uma certa divindade ou poder superior em que acreditam. É esta religação que se crê estar na base de todas as religiões e nos permite concluir que o ser humano é essencialmente religioso por mais que o queiram negar ou desconhecer os ateísmos, os agnosticismos, os niilismos, etc.  

Mas será possível que o ser humano possa “existir sem pensar”, sem querer conhecer e dominar a realidade na direção do imensamente grande, do imensamente pequeno e do imensamente consciente com a sua razão, a sua ciência e a sua tecnologia? Todas as nossas sociedades estão formatadas por certas formas de pensamento mais racionalizadas, idealistas ou pragmatizadas, concretas, existenciais, afetivas, cordiais. Nota-se, no entanto, no meio da pressa desmesurada e de uma certa superatividade, que desequilibra as sociedades dos nossos dias, uma grande vontade de parar, de deixar de pensar e de agir. Será apenas a procura da inação para esquecer ou encontrar mais serenidade e calma na vida do dia a dia demasiado acelerada e supérflua que assegure a felicidade por que, no fundo, todos os humanos aspiram? Ou simplesmente a rejeição de um modo de vida que faz cada vez menos sentido e precisa de voltar a valores mais sólidos e humanos que abram janelas de esperança para o futuro? Como sempre, talvez, a resposta deva ficar a meio caminho do oito ou oitenta. Mas nem por isso essa questão deverá deixar de ser colocada.

Lembro-me que quando ainda era muito jovem e entrei em contacto com os filósofos da Grécia Antiga e de Atenas, em especial, lugar onde a Filosofia assumia grande destaque como conjunto de todos os saberes sobre a natureza, a vida, a sociedade, acultura não apenas quanto ao seu como e os seus quês, mas sobretudo quanto aos seus porquês e para quês, senti um grande prazer de poder conhecer gente tão ilustre no domínio do pensamento. Era com um grande entusiamo e admiração que então me animava pelo nível de conhecimento, pensamento e reflexão que os pensadores, os poetas, os historiadores e os “cientistas”, à época, manifestavam nas suas conversas e nos seus escritos em que Platão e Aristóteles, Homero, Hesíodo, Sócrates, Tales de Mileto, Pitágoras, Parménides, Heraclito, se me é permitido evocar apenas alguns, emergiam como os seus maiores vultos, que parti para essa aventura que a Filosofia como amizade pela sabedoria nos instiga e questiona. Ainda hoje, muitas das ideias que me vêm à mente e alimentam o meu pensamento, reflexão e me continuam a questionar encontram eco nesse tempo. Sei que, os nossos pontos de vista e a nossa visão do mundo e da vida são certamente diferentes, mas no essencial continuamos a debater as mesmas questões que ainda não encontraram as respostas que o homem de todos os tempos procura desde que começou a interrogar o mundo, a vida e tudo aquilo que entra no campo da sua perceção, imaginação e entendimento.

Neste tempo, em que o dia já vai alto e mesmo a declinar para o ocaso, acho que estou a voltar ao filosofar que durante largos anos deu o lugar principal a outras preocupações mais profissionais e concretas, mas sem nunca deixar apagar esta chama que a referência a Atenas e Jerusalém em mim acendeu nesse meu passado e que, de algum modo, persiste hoje, e que continuo a descobrir em muitos outros contextos e latitudes da cultura e da civilização. Julgo que o passado destas duas visões do mundo e da vida continuam bem vivas nos povos dos cinco continentes: uma visão mais racional e outra mais cordial, mais crente embora com intensidades e incidências distintas, sobretudo, a ocidente e a oriente.

Há um homem oriental e outro ocidental que, na realidade, convergem e que a globalização veio fazer emergir nos diferentes quadrantes geográficos, mas que são distintos ainda que complementares e ambos estão sempre presentes nos mais diversos caminhos do ser humano.

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